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O DIREITO DE PROPRIEDADE COMO CATEGORIA FUNDAMENTAL DO NEGÓCIO JURÍDICO – LIMITAÇÕES POSSÍVEIS

Foto do escritor: Clayton RodriguesClayton Rodrigues

Atualizado: 28 de jan. de 2019


Clayton Rodrigues


Sócio da Rodrigues e Pinho Advogados Associados. Aluno Especial do Mestrado em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina - UEL. Participante do projeto de pesquisa Regulação econômica no Brasil e a Constituição Federal de 1988: controles do e sobre o Estado em face da administração pública gerencial. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR. Advogado membro da Comissão de Direito Imobiliário de Urbanístico da OAB Londrina. Conselheiro do CRECI Paraná.

E-mail: clayton@rodriguesepinho.adv.br


1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, inciso XXII prevê que “é garantido o direito de propriedade”. Por muitos anos o direito à propriedade no Brasil foi considerado absoluto, ou quase, e permitia que seu titular o exercesse de forma a atender seus interesses pessoais sem que tais desejos sofressem limitações.

O condicionamento do direito à propriedade privada ao cumprimento de sua função social altera essa visão e a promulgação da Constituição Federal de 1988 solidifica essa questão ao asseverar, no mesmo dispositivo constitucional, tanto a garantia da propriedade como seu condicionamento à função social[1], atribuindo-lhe característica de direito fundamental.

Assim sendo, a Constituição Federal inaugurou uma fase na qual o direito brasileiro apenas protege a propriedade que cumpra a sua função social, independentemente se cumprir a sua função individual, ou seja, atender os desejos de seu titular.

Tal fase mostrou indícios de desenvolvimento com as reivindicações por melhores condições sociais e, posteriormente, as preocupações com o meio ambiente também reforçaram a ideia de que as propriedades devem cumprir suas funções sociais, ainda que para isso o Estado deva utilizar-se de meios que possibilitem seu cumprimento.

Ver-se-á que as fontes da relação contratual não estão só no contrato, mas também na lei, nos usos, na equidade, que constitui um limite positivo à autonomia privada, e tais instrumentos podem ser úteis para superar as desigualdades de fato e para criar os pressupostos de uma igualdade de tratamento.

Assim, a atual Constituição trouxe limite à autonomia, não mais externos e excepcionais, mas, antes, internos, na medida em que são expressão direta do ato e de seu significado constitucional.

O direito de propriedade sofre ainda limitações decorrentes da lei, dos princípios gerais de direito e da própria vontade do proprietário, em toda a extensão o seu domínio, em algumas faculdades, contra a sua própria vontade ou voluntariamente, no interesse da coletividade, no próprio ou de terceiros.


2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Do Direito de Propriedade

A discussão acerca do direito de propriedade está longe de ter um final, e ao longo da História a sua natureza jurídica foi se modificando, passando do absoluto ao relativo e do individual ao social.

Ao ser considerado um direito absoluto, na Roma Antiga, o direito de propriedade conferia o poder de uso e gozo perpétuos, estendendo-se desde o subsolo até a altura que seu proprietário alcançasse.

Com o advento do iluminismo no século XVIII, essa forma de tratar o direito à propriedade passou a ser questionada e vista como um privilégio, concebido como uma relação entre uma pessoa e uma coisa, como pode ser constatado no trecho da obra “A origem da desigualdade entre os homens”, de ROUSSEAU[2]:

[...] a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, tira a sua força e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano, tornando-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. Resulta ainda que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural todas as vezes que não concorre na mesma proporção com a desigualdade física. Essa distinção determina suficientemente o que se deve pensar, nesse sentido, da espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei de natureza, de qualquer maneira que a definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, ou que um punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falta o necessário. (destaquei)

No decorrer da História, observa-se que o direito à propriedade sempre foi absoluto, exclusivo e perpétuo, como bem explica José Afonso da SILVA[3]:

Absoluto, porque assegura ao proprietário a liberdade de dispor da coisa de modo que melhor lhe aprouver; exclusivo, porque imputado ao proprietário, e só a ele, em princípio, cabe; perpétuo, porque não desaparece com a vida do proprietário, porquanto passa a seus sucessores, significando que tem duração ilimitada (CC, art. 527) e não se perde pelo não uso simplesmente.

Contudo, essas características atribuídas ao direito à propriedade buscava atender aos princípios individualistas da burguesia europeia, fiéis à tradição romana, a fim de proporcionar segurança e estabilidade aos novos proprietários pós revolução Francesa, e começa a perder força no século XIX, ao se constatar que o absolutismo e a perpetuidade do direito de propriedade eram fatores causadores de desigualdade social e empobrecimento e miserabilidade da população.

Um passo adiante, à vista desta constatação, passou-se a entender o direito à propriedade como uma relação entre um indivíduo (sujeito ativo) e um sujeito passivo universal, integrado por todas pessoas, o qual tem o dever de respeitá-lo, abstraindo-se de violá-lo[4].

Ademais, a ascensão de novas doutrinas que questionavam a propriedade privada e defendiam a ideia de que o exercício do direito à propriedade deveria levar em consideração a dignidade e vidas humanas, acabaram por exigir uma relativização desse direito.

Historicamente a Constituição Alemã de Weimar, em 1919, foi uma das primeiras a elevar a ideia de veiculação social da propriedade à categoria de princípio jurídico, estabelecendo que o seu uso deve servir tanto ao seu proprietário quanto ao bem de toda coletividade.

Assim, o direito à propriedade foi abandonando a então concepção romana da propriedade para ser compatibilizado com as finalidades sociais inerentes a sociedade contemporânea, adotando-se uma concepção finalista, sendo albergado por institutos de direito público e com a noção ínsita de função social.

2.1.1 Da Propriedade nas Constituições Brasileiras e seu Tratamento Jurídico

Até a promulgação da Constituição brasileira de 1934, o direito à propriedade era praticamente absoluto no Brasil, sendo regulamentado apenas a desapropriação pelo Poder Público, mesmo assim, mediante justa indenização.

É possível que antecedentes históricos como a Revolução de 1930 e a Revolta Constitucionalista de 1932, bem como a já citada Constituição de Weimar, inspiraram a Constituição de 1934 e a inclusão do condicionamento da propriedade privada ao cumprimento de sua função social.

Inserido no capítulo que trata dos Direitos e Garantias Individuais, o artigo 113 dessa Constituição assim prescreve:

Art. 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior. (destaquei).

É importante ressaltar que a Constituição supracitada mesmo positivando a possibilidade da limitação do direito à propriedade, remete para o legislador ordinário a disciplina da regulamentação desse direito.

Como é notório, a Constituição de 1934 teve vida curta, e com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder e a implantação do Estado Novo foi promulgada a Constituição de 1937, inspirada nos ideais poloneses, a qual, como esperado, não concedeu o mesmo tratamento ao tema, cujo texto assim previu:

Art. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

14) o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício; (destaquei).

Com o caminhar para a redemocratização e os anseios sociais do pós-guerra, a necessidade de se cumprir a função social da propriedade foi premente e a redação da Carta de 1946 garantiu o Direito de propriedade condicionando o seu exercício ao bem-estar social, incluído esse princípio no capítulo da ordem econômica e social, como segue:

Art. 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§ 16 – É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.

Art. 147 – O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. (destaquei).

A Lei nº 4.504/64, mais conhecida como o Estatuto da Terra, criou as regras para o para cumprimento da função social da propriedade rural e estabeleceu metas para a reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura.

Cumpre salientar que o Estatuto da Terra, foi criado no regime militar instalado em 1931 e a sua criação estava relacionada ao temor elitista por uma revolução dos agricultores que começaram a se organizar desde a década de 1950 fortalecidos pelos espectros da implantação de reformas agrárias em vários países da América Latina. O movimento em prol de maior justiça social e reforma agrária ganhou dimensões consideráveis no país, sendo, contudo, praticamente aniquilado pelo regime militar em 1964, que criou o estatuto para apaziguar os ânimos e tranquilizar os proprietários de terras.

A Constituição de 1967, não sofreu alterações significativas no tocante ao direito de propriedade, e o texto do artigo 153 praticamente reproduziu o prescrito na Constituição de 1946.

Entretanto a Emenda Constitucional nº 01 de 17 de outubro de 1969 incorporou o Ato Institucional nº 05 ao texto de 1967, e praticamente impôs outra Constituição aos brasileiros, no que se refere à função social da propriedade, fez um modesto avanço, como se observa na redação dada ao artigo 160:

Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios:

[...]

III - função social da propriedade;

Por fim, a Constituição Federal de 1988 inovou substancialmente o tratamento dado à matéria, inaugurando uma nova ordem política e jurídica na sociedade brasileira e incluiu a função social da propriedade entre os direitos e garantias individuais e coletivos em seu artigo 5º, conferindo-lhe o status de cláusula pétrea e ainda coloca a propriedade privada como princípio da ordem econômica:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[...]

II - propriedade privada;

III – função social da propriedade; (destaquei).

No Capítulo II, relativo à política urbana, o artigo 182 assim estabelece:

Art. 182 – A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

[...]

§2° - A propriedade urbana cumpre a sua função social quando às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

[...]

§4° - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I – parcelamento ou edificações compulsórios;

II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. (destaquei).

No Capítulo III, relativo à política agrícola e fundiária e da reforma agrária, trata da função social da propriedade rural:

Art. 184 – Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

Art. 185 – São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;

II - a propriedade produtiva.

Parágrafo único – A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos à sua função social.

Art. 186 – A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (destaquei)

É possível afirmar pela leitura dos dispositivos supra, que se agregou ao direito de propriedade, antes tratado sob a ótica patrimonialista, o dever jurídico de agir em prol do interesse coletivo, ou seja, tal direito foi submetido ao interesse comum, impondo-lhe o exercício de uma função social voltada ao interesse coletivo.

Hodiernamente o direito de propriedade não deve ser pensado sem estar associado à sua função social, estando completamente superada a noção de que esse direito é exclusivamente do direito privado, pois são inúmeros os institutos de direito público que disciplinam seu exercício.

Assim, para esse novo ordenamento jurídico constitucional a propriedade está condicionada às limitações impostas ao pleno exercício da propriedade, tornando, pois, a função social uma parte integrante do conteúdo da propriedade privada.

No texto constitucional brasileiro não há garantia à propriedade, mas tão somente garantia à propriedade que cumpre a sua função social e assim sendo, não há que se falar em análise balanceada da função social e da propriedade privada, como dois princípios em direções opostas. Como muito bem colocado por Gustavo TEPEDINO[5].

A função social compõe a propriedade. A propriedade é, ao menos neste sentido, função social, como todo instituto é o complexo que resulta de sua estrutura e de sua função. Não há, assim, que se falar em um espaço mínimo, ao qual a propriedade de cada indivíduo se retrairia, para manter-se imune ao avanço do interesse social. A função social é, antes, capaz de moldar o estatuto proprietário em toda a sua essência, constituindo, como sustenta a melhor doutrina, o título justificativo, a causa, o fundamento de atribuição dos poderes ao titular. Não há, assim, que se falar em um espaço mínimo, ao qual a propriedade de cada indivíduo se retrairia, para manter-se imune ao avanço do interesse social.

Infere-se daí que a função social é um pressuposto ao exercício pleno do direito de propriedade. Em outras palavras, todas as garantias, prerrogativas e privilégios legais outorgados à propriedade estão restritas àquelas que cumprirem a sua função social.

2.2 Da Função Social da Propriedade

A função da propriedade, historicamente, sempre foi associada ao sistema produtivo e os meios de produção aos quais a propriedade estava localizada, mas, como já foi mencionado, com a evolução constitucional e as garantias sociais nelas inseridas, conferiram força e importância a esse princípio.

Tendo por norte que o princípio da função social da propriedade ultrapassa o entendimento de simples restrição ao direito de uso, gozo e disposição do titular da propriedade, o proprietário está sujeito a obrigações crescentes que abrangem os direitos da coletividade, de tal forma que este princípio pode ser tido como associado a própria estrutura da noção de propriedade.

Estando a propriedade inserida em um contexto social, sua função social obriga o proprietário, pessoa natural ou jurídica, a ter condutas negativas, como por exemplo, o de não poluir, e também positivas, como o de recompor áreas degradadas ou em caso de propriedade urbana, atendendo às exigências expressas no plano diretor, ou seja, a função social impõe ao proprietário, obrigações de agir, na forma de comportamentos ativos na direção do proveito social jamais sendo entendida como uma mera extensão do poder de polícia do Estado.

O artigo 2º da Lei nº 10.257/2001, o Estatuto das Cidades, estabelece que “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” e com isso se pretende que a propriedade sirva à destinação para qual é vocacionada, proporcionando o proveito econômico ao seu proprietário em condições de equilíbrio com os interesses da coletividade.

Também a Constituição Federal de 1988 estabelece como uma propriedade urbana cumpre sua função social “quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”, conforme previsto no parágrafo segundo do artigo 182. Contudo, nem todos os municípios estão obrigados a ter um plano diretor, apenas os que possuam mais de vinte mil habitantes.

Já uma propriedade rural cumpre sua função social quando em consonância com o disposto no artigo 186 da Constituição Federal de 1988:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

O termo destacado no artigo supra, simultaneamente, indica que a propriedade rural possui três dimensões que se integram: humana, ambiental e econômica. De forma que essas dimensões devem ser atendidas de forma cumulativa para o efetivo cumprimento da função social da propriedade rural.

Nesse ínterim, ao vestir a roupagem do novo ordenamento jurídico brasileiro, voltado a garantir o acesso e conservação dos bens necessários ao desenvolvimento de uma vida digna, a propriedade, seja no âmbito dos bens públicos como recursos naturais ou de bens privados como residências, aos olhos do texto constitucional, está inteiramente a serviço do seu objetivo fundamental, qual seja, o pleno desenvolvimento da pessoa humana.


2.3 Direito de Propriedade como garantia fundamental

SARLET[6] aduz que não é por acaso, que a doutrina tem alertado para a ambiguidade, heterogeneidade e ausência de consenso quanto ao conceito e terminologia, inclusive no diz respeito ao significado do termo. Lembra que a própria Constituição Federal, embora tenha avançado, continua a se caracterizar por uma diversidade semântica, utilizando termos diversos ao referir-se aos direitos e garantias fundamentais. Sem a pretensão de adentrar no estimulante debate sobre sua definição aqui neste artigo, a garantia fundamental é a norma de conteúdo assecuratório, ou seja, serve para assegurar o direito declarado, reconhecidos pelo direito positivado.

A ideia de um Estado Democrático implica em afirmar valores fundamentais da pessoa humana, bem como se exige a organização e funcionamento do Estado tendo em vista a proteção daqueles valores[7].

Não há dúvida que o direito de propriedade é uma garantia fundamental. Todavia, assim como outras, também essa está sujeita à normas restritivas. ZULIANI afirma que o direito real de propriedade não é absoluto, embora mantenha sua aura protetora com força do sentido erga omnes ao dono diligente[8].

Já Orlando GOMES ensina que o direito real de propriedade é o mais amplo dos direitos reais – “plena in re potesta”. Prossegue o doutrinador afirmando que a propriedade é um direito complexo, se bem que unitário, consistindo num feixe de direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto. Que é absoluto, pois confere ao titular o poder de decidir usar a coisa, abandoná-la, aliená-la, destruí-la, como também limitá-la, desmembrando-a, constituindo outros direitos reais em favor de terceiros, concluindo que é absoluto por ser oponível a todos, de poder direto sobre a coisa com o qual se distingue das outras relações jurídicas[9].

Afirma que o Código Civil de 2002 mitiga o caráter irrestrito do direito real de propriedade com a adoção de um comportamento finalístico, cuja teleologia é dada pela ordem econômica e social, pela tutela do meio ambiente, patrimônio histórico e artístico[10].

O atual Código Civil - CC, assim como o anterior, não define direito de propriedade, mas deixa explícito as faculdades do proprietário no art. 1.228[11]. Já nos artigos seguintes, traz limitações ao direito de propriedade como o escopo de coibir e impedir que seja exercido, acarretando prejuízo ao bem-estar social. Corrobora com isso o art. 2.035, que limita também o direito até mesmo de contratar, pois veda que a cláusula que contrariar preceitos de ordem pública, com a finalidade de assegurar a função social da propriedade e dos contratos[12].

Maria Helena DINIZ[13] afirma que isso possibilita o desempenho da função econômica-social da propriedade, preconizada constitucionalmente, criando condições para que ela seja economicamente útil e produtiva, atendendo ao desenvolvimento econômico e aos reclamos de justiça social, afastando o individualismo e o uso abusivo do domínio.

O art. 1.228 do Código Civil – CC, traz em seu enunciando: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Têm-se como o mais completo dos direitos subjetivos, a matriz dos direitos reais e o núcleo do direito das coisas, ou seja, confere ao seu titular os poderes de usar, gozar e dispor da coisa, assim como de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

O direito real consiste no poder jurídico, direto e imediato, do titular sobre a coisa, com exclusividade e contra todos. Tem como elementos essenciais, o sujeito ativo, a coisa e a relação ou poder do sujeito ativo sobre a coisa, chamado domínio, sujeitando-se apenas às limitações legais impostas em razão do interesse público ou da coexistência do direito de propriedade de outros titulares (CC, art. 1.231).

O art. 1.231 do Código Civil prescreve que, “a propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário”. Contudo, como dito acima, existem limitações, pois a atual Constituição Federal – CF dispõe que a propriedade atenderá a sua função social (art. 5º, XXIII), e que a ordem econômica deverá observar a função da propriedade, impondo freios também à atividade empresarial (CF, art. 170, III).

TEPEDINO[14], ao tratar do tema ensina:

A propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espeço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem, A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade. [...] Tal conclusão oferece suporte teórico para a correta compreensão da função social da propriedade, que terá, necessariamente, uma configuração flexível, mais uma vez devendo-se refutar os apriorismos ideológicos e homenagear o dado normativo. A função social modificar-se-á de estatuto para estatuto, sempre em conformidade com os preceitos constitucionais e com a concreta regulamentação dos interesses em jogo.

Logo, segundo Orlando GOMES[15], a partir do momento em que o ordenamento jurídico reconheceu que o exercício dos poderes do proprietário não deveria ser protegido tão somente para satisfação do seu interesse, a função da propriedade tornou-se social, passando a ser exigidos os seguintes aspectos:

- privação de determinadas faculdades;

- criação de um complexo de condições para que o proprietário possa exercer seus poderes;

- a obrigação de exercer certos direitos elementares do domínio. A funcionalização da propriedade se resolveria na distinção entre espécies particulares de bens, classificados mediante critério econômico, e pela modificação nas normas que a atividade do proprietário. Quanto aos bens, é relevante a classificação entre os bens de produção, bens de uso e bens de consumo, por isso que, “só os bens produtivos são idôneos à satisfação de interesses econômicos e coletivos que constituem o pressuposto de fato da função social”. Só apedeutas estendem aos bens de uso o princípio da função social, falando em função social da propriedade edilícia ou, até mesmo, na dos bens duráveis. Quanto à mudança do regime legal, as novas disposições normativas voltam-se para um momento da atividade do proprietário, que é da empresa, ou, segundo outros autores, “a propriedade chamada a absorver a função social não é propriedade direito-subjetivo, mas a propriedade instituto-jurídico”, indicativa de que “a funcionalização não toca o conteúdo de direito, ficando de fora, muito ao contrário”.

Deste modo, no entender de GOMES[16], há a necessidade de abandonar a concepção romana da propriedade para compatibilizá-la com as finalidades sociais da sociedade contemporânea, adotando-se uma concepção finalista, onde o direito individual impõe deveres em prol da sociedade.

Como se percebe, o direito de propriedade sofre limitações decorrentes da lei, dos princípios gerais de direito e da própria vontade do proprietário. O Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) é um desses instrumentos, onde são estabelecidas formas de intervenções na propriedade privada. Ainda sobre as limitações, GOMES[17] explica em sua obra que o proprietário é sacrificado em toda a extensão o seu domínio, em algumas faculdades, contra a sua própria vontade ou voluntariamente, no interesse da coletividade, no próprio ou de terceiros.

No direito moderno, o interesse público também recebeu grande ênfase, influindo no próprio conceito de propriedade, alargando-se ao ponto de confundi-lo com o interesse coletivo, no mais amplo sentido da locução. Também registra que alguns princípios gerais de direito, como o da igualdade das propriedades e da repressão ao abuso de direitos são aplicados de modo cada vez mais enérgicos.

Assim, prossegue Orlando GOMES, considerando a expansão e que cada vez é maior a intervenção do Estado, ocorrendo o enfraquecimento interno, um verdadeiro abalo na própria condição tradicional de Direito Privado, deixando o Estado de ser um amigo desinteressado, protetor do proprietário, para se tornar companheiro incômodo, que busca dominar e usufruir a propriedade, co-participando na substância econômica e jurídica, por meia dessa associação forçada, dando azo a expressão leiga “que o governo se tornou sócio dos proprietários”.

Nessa visão acima, haveria verdadeiro “condomínio” entre o Estado e os proprietários, mediante legislação fiscal, de tal modo que os proprietários de nossos dias desconhecem aquele sentimento da soberania que o dominus romano experimentava. Afirma que estaria ocorrendo hoje seria a restauração, da concepção medieval da propriedade, segunda a qual o domínio útil dos imóveis era sujeito a obrigações reais perpétuas, que deveriam ser cumpridas em proveito dos proprietários inertes, com a diferença, de hoje atualmente o Estado substitui aos particulares que desfrutavam de tais prerrogativas asseguradas aos titulares desse domínio ocioso, sendo Estado semelhante ao barão dos tempos modernos[18].

Sem aprofundar sobre esse ponto nesse momento, importante lembrar que existem ainda várias outras limitações ao direito de propriedade, dentre as quais as limitações legais, as do direito administrativo (ex. desapropriação), limitações jurídicas (ex. abuso de direito), limitações voluntárias (ex. usufruto a outrem), cláusula de inalienabilidade, e intervenções do Estado, previstas nos diversos diplomas.

Com isso, conforme leciona PERLINGIERI[19], “a autonomia privada não é um valor em sí; pode sê-lo, e em certos limites, se e enquanto responder a um interesse digno de proteção por parte do ordenamento”. Este mesmo doutrinador cita, a exemplo, algumas previsões no Código Civil, como expressão da limitação da auto-regulamentação, por meio de regras externas em um contrato não corretamente autodisciplinado.

Afirma também, que as fontes da relação contratual não estão só no contrato, mas também na lei, nos usos, na equidade, e tal circunstância não autoriza a falar de profanação da auto-regulamentação, mas que constitui um limite positivo à autonomia privada, e que estes instrumentos podem ser úteis para superar as desigualdades de fato e para criar os pressupostos de uma igualdade de tratamento.

Neste prisma, não se pode mais discorrer sobre limites de um dogma ou mesmo sobre suas exceções, e que a Constituição teria operado uma reviravolta qualitativa e quantitativa na ordem econômica, os chamados limite à autonomia, colocados à tutela dos contratantes mais frágeis, não são mais externos e excepcionais, mas, antes, internos, na medida em que são expressão direta do ato e de seu significado constitucional[20].


CONCLUSÕES

Deste modo, não existem direitos absolutos, havendo limites ao direito de propriedade. Não se pode esquecer que mesmo o direito à vida, de forma ampla e genérica, pode sofrer restrições na ordem jurídico-Constitucional brasileira.

Contudo, se existem limites a todos os direitos, é imperativo que saibamos até onde se pode limitá-los, a fim de que se evite seu completo desvirtuamento ou mesmo sua extinção a pretexto de limitá-lo.

Os limites legais aos direitos fundamentais devem se sujeitar aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, em especial, àquilo que, em sede doutrinária[21], designam de limites dos limites, devendo auferir, caso a caso, como se poderia saber se o núcleo essencial do direito efetivamente não foi atingido.

[1] Constituição Federal - art. 5º, XXIII - a propriedade atenderá a sua função social.


[2] ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso Sobre a Origem da Desigualdade. pp. 140-141.


[3][3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 278.


[4] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 269.


[5] TEPEDINO, Gustavo e Schreiber, Anderson. A Garantia da Propriedade no Direito Brasileiro. p. 106.


[6] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. pp. 33-36.


[7] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 145.


[8] ZULIANI, Ênio Santareli. Ensaio sobre a função social da posse e usucapião de bem público a partir de julgado do STJ. p. 507.


[9] GOMES, Orlando. Direitos reais. p. 109.


[10] Ibidem. p. 110.


[11] CC, Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.


[12] CC, Art. 2.035, Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.


[13] DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. p. 849.


[14] TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. pp. 321-322.


[15] GOMES, Orlando. Direitos reais. p. 125.


[16] Ibidem, p. 129.


[17] Ibidem, pp. 141 -142.


[18] GOMES, Orlando. Direitos reais. p. 143.


[19] PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. p. 279.


[20] Ibidem, p. 280.


[21] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 349 e seguintes.

 
 
 

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